sábado, 12 de fevereiro de 2011

Sementes no Chão

Olá, gente. Passo agora a narrar a redação com a qual fui agraciado com um prêmio no plano nacional a nível de Ensino Médio no 4º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero, promovido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e pelo CNPq. Realmente foi um momento inesquecível na minha vida pessoal e acadêmica. Eu desejo sempre que todo o trabalho que eu faça desse por diante sejam em prol de ser um cidadão ativo em nossa sociedade, que necessita de pessoas que sejam verdadeiros pontos de luz. Que meu coração inunde no desejo com o qual eu tive ao fazer esse texto: de ajudar para um mundo melhor, mesmo que seja num pequeno plano, mas que seja algo eficaz.

SEMENTES NO CHÃO
Jefferson Rocha

Pela Associação Educacional Professora Noronha, com a correção do professor David ben Schwantes.


Meu nome é Maria dos Anjos. Sou uma ex-professora e diretora aposentada. Eu completei ontem oitenta e nove anos (não tenho vergonha de mostrar minha idade... pelo contrário, tenho orgulho!...). É uma tarde de sábado chuvosa. Estava ainda pouco sentada na poltrona da biblioteca da minha casa, vendo a chuva cair, lembrando de toda a minha vida e de minhas experiências como professora. Decidi escrevê-las, para que não caiam no olvido como muitas das experiências humanas que mereciam ser contadas, mas nunca o foram, tirando assim a oportunidade de mudança que a história de muitos poderia ter tido.
Quando me percebi gente, vivia num subúrbio da cidade de São Paulo, porém minha mãe dizia que ela tinha nascido em Minas Gerais. Eu era a mais velha de quatro irmãs e três irmãos, vivendo quase que exclusivamente da renda da minha mãe que era lavandeira, já que todas as noites meu pai gastava no boteco quase tudo que ganhava como servente de pedreiro.  Com renda apertada, chegava dias em que comíamos apenas sardinha e ovo... (um verdadeiro luxo se comparado com aquilo que a vizinhança comia).
Nunca me esqueci das inúmeras vezes que tive que esconder meus irmãos das terríveis brigas que meus pais tinham. Chorava, implorava para que parassem, mais quase sempre minha mãe saía muito machucada, ficando até mesmo alguns dias sem trabalhar. Mas o que mais me indignava era o que mamãe dizia depois, quando falava sobre a briga: “Porcaria! Se tivesse a oportunidade de escolher, eu queria ter nascido homem!...”
Apesar dos comentários das vizinhas, consegui ir para a escola. Elas diziam coisas como: “Ela já está bem grande! Se estudar, vai virar uma ‘folgada’! Podia ajudar a coitada da mãe!”. Consegui me alfabetizar e cursei todo o ensino regular, mesmo que de forma precária, devido às nossas condições.
Muitos anos depois, nossa situação não melhorou nem sequer um pouco. Minha professora de português, por eu ser uma boa aluna e muito esforçada, emprestou-me um livro de José de Alencar, Senhora. Foi o melhor livro que tinha lido até então, e aquele que mais revolucionou minha vida. Consegui ver em Aurélia Camargo uma mulher que sabia viver de forma independente, e que havia formado um caráter forte depois de tudo que sofrera com as injustiças dos homens. Ela fazia um contraste muito grande com as mulheres da minha vizinhança, incluindo minha mãe, que agüentavam toda sorte de sofrimentos passivamente, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Comecei então a estabelecer um propósito: tornar-me-ia professora e tentaria mudar esse pensamento retrógrado, como acidentalmente mudaram o meu.
Algum tempo depois, minha mãe morreu de pneumonia, e meu pai fugiu dois dias após o acontecido. Apesar de ser a mais velha dos filhos, fui a única que sobrou em casa.
Uma de minhas irmãs, a mais bonita e totalmente analfabeta, foi “descoberta” e virou  modelo, não sabíamos de quê exatamente (posteriormente, nós descobrimos que ela fazia fotos nua e semi-nua para calendários); a segunda vivia na calçada com as vizinhas, conversando sobre os rapazes que passavam na rua. Depois, fugiu com o “seu verdadeiro amor”, segundo ela; a terceira, mesmo estudando como eu, costumava ouvir os comentários maldosos das vizinhas. Acabou engravidando de um rapaz a quem namorava. Teve que abandonar os estudos para se casar e cuidar de seus filhos e do marido (Posteriormente, eu soube que vivia a mesma vida que a mamãe...). Quanto aos rapazes, bem esses só Deus sabe onde estão...
Dessa forma, fiquei morando sozinha. Por desleixo, nunca até a época havia namorado. Então na vizinhança começaram a me chamar de “moça velha”. Fiquei com tanta raiva daquela gente, que resolvi me mudar. Mudei-me para um outro lugar não muito melhor que o outro, todavia era mais perto de uma universidade, e comecei a fazer o magistério. Estudava e me esforçava tanto para ser professora... e tudo isso para cumprir o meu ideal: tentar, com as armas que tinha nas mãos, mudar a situação de injustiça que as mulheres passavam e fazer com que elas tomassem consciência da força que têm, para não se tornarem iguais a minhas vizinhas ou mesmo a minha pobre mãe...
Formei-me. Acho que fui a única da minha família (talvez até dos nossos conhecidos...) que tinha um diploma. Já com algum dinheiro de trabalhos em algumas escolas, e principalmente com mais experiência, mudei-me para o Rio de Janeiro. Mesmo com tantas vagas em outros lugares disponíveis, acabei recebendo uma vaga para ensinar numa escola de uma favela. “Ah não!” – pensava eu – “um lugar igual ao que vivia... pelo amor de Deus!” Mas mesmo assim, tendo eu uma missão como a que tinha, resolvi aceitar. Realmente, notei sem muito esforço que o lugar era igualzinho ao qual eu vivia antes em São Paulo, incluindo a situação de injustiça vivida pela mulher na sociedade. “Acho que a situação seria igual se viajasse para qualquer outra cidade do Brasil”, pensava eu.
Foi uma tristeza o início. Sabe o que é ter que dar aula a crianças que mal tinha tomado o café da manhã? E algumas, que não vinham a escola só porque não tinham um par de chinelos para calçar? Porém, o pior era ver que havia muitas meninas no lado de fora e poucas no lado de dentro. Será que todo o resto delas não tem capacidade de aprender e a desenvolver sua mente? “Tinham que ajudar os pais”, era a desculpa da maioria dos pais que ia visitar. Mas como eu ia argumentar com essas pessoas? Como eu ia dizer que estudo é crescimento, se a chance de ganhar dinheiro para não passar fome estava muito mais ao seu alcance? Meu trabalho era muito difícil. E quem falou que seria fácil?
Pensando no grande número de semi-analfabetismo entre as mulheres da região, resolvi fazer um trabalho voluntário para verdadeiramente alfabetizá-las (escolhi as mulheres porque a maioria entrava com a maior parte da renda em suas casas, de maneira que seriam as que mais necessitariam disso.) Comecei com algumas vizinhas. Ouvindo da própria boca delas (algumas vezes das outras), vi problemas tão diferentes, e ao mesmo tempo tão iguais...
Mas, com a vontade e o esforço que tinham, sabendo organizar o tempo cuidando dos filhos e da casa, ou do seu horário de trabalho, ou até mesmo aproveitando o horário em que o marido estaria fora, elas aprenderam não só a ler palavras, mas o mundo que estava em sua volta, e a viajar pela Literatura.
Acompanhei uma mulher negra, completamente analfabeta e desempregada. Ela apanhava muito do marido, pois este chegava bêbado e até algumas vezes drogado. Porém, aproveitando o tempo que tinha, voltou a ter ânimo de estudar e completou seus estudos. Nas primeira vezes que saía de casa à escola, deixava um bilhete para o marido: “Faça você mesmo o almoço, fui ‘para’ a escola!” Quase chorei de emoção quando ouvi essa história. Mais tarde, acabou se divorciando dele e se preparou para um concurso. Passou e acabou se tornado uma secretária numa importante multinacional.
Vi uma quase-prostituta (digo isso porque já acompanhava meninas mais velhas do que ela para esses atos. Mas costumo sempre colocar esperança nos mais jovens, sendo que ela tinha apenas doze anos.) que trabalhava pela manhã para complementar a renda da família, que no começo não via a utilidade de se saber ler, viajar através da Literatura, deixando transformar sua mente de tal maneira que, apesar de todas as dificuldades, formou-se em psicologia, e hoje ajuda a muitas outras pessoas a mudarem de vida.
Eu vi também uma lavadeira que tinha que sustentar seis filhos com apenas o seu trabalho tomar todas as suas poucas horas vagas para se alfabetizar. Consegui criar os seus filhos melhor, administrando o seu tempo, e hoje eles sabem fazer as escolhas certas, estando muito bem de vida. Também aprendeu a votar certo. Lembro-me de vê-la, quando ainda analfabeta,  pulando quando seu tradicional candidato ganhava. Na outra eleição, ela torcia para aquele perder e seu novo candidato (ou melhor, candidata) ganhar, pois tinhas as melhores propostas.
Também acompanhei o caso de uma ex-dona de boteco, que trazia menores para se prostituir. O seu boteco estava falindo, pois não sabia organizá-lo e acumulava muitas dívidas. Ela moralizou a sua mente, conseguiu aprender a organizar seu dinheiro melhor e passou a defender o direito das mulheres no bairro, assim como eu. Ela conseguiu montar o maior mercado da região e, utilizando de sua influência, ajudou a criar um instituto para cuidar dessas meninas que teriam como destino a prostituição.
Enfim, há tantos outros casos, uns mais emocionantes que os outros... Todas elas mulheres, que tinham no espírito a força de lutar não só contra um inimigo delas, a própria sociedade, mas o inimigo de todos, o mal uso da educação na sociedade. Consegui criar aurélias-camargo-de-um-salário-mínimo. Fico feliz em saber que a cada dia as mulheres vêm ganhando seu lugar, mas sobretudo como sendo a melhor alternativa. Fico feliz também em ver que muitas que eu ajudei tornaram-se árvores, que já geraram frutos e vão, com certeza, espalhar suas sementes. Há ainda nesta sociedade moderna, mais com o pensamento arcaico, muitas diferenças entre as mulheres e os homens, que vão além do natural. Mas tenho certeza que a verdadeira educação, coisa que vai muito além de conteúdos e provas, é algo que faz abrir a mente das pessoas, sejam homens ou mulheres, para os erros que nossa sociedade, que por negligência de todos, têm, e dá condições para tentarem consertá-la. Além dos vários outros problemas, a desigualdade entre os gêneros será também consertada, principalmente se somado à força que a mulher tem.
Era o que eu tinha a deixar. Já está começando a anoitecer e a chuva ainda cai lá fora. Só espero que as sementes que plantei com tanto esforço floresçam. Mas só em saber que cumpri meu ideal no meu mundo, poderei morrer feliz.

Dom Pedro, outubro de 2008.

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