Por Jefferson Rocha
O cheiro daquele lugar me fascinava bastante. É claro, pois quando ainda muito criança era meu único lugar de diversão. Desde quando me notei gente, minha mãe levava todos seus seis filhos para as grandes rochas que ficavam a beira de um riacho de águas turvas, onde lavavam roupa. Era o serviço que minha mãe e muitas outras mulheres faziam para arranjar algum dinheiro para o sustento da casa, já que a renda dependia essencialmente delas. Todos os dias, trabalhavam desde manhã bem cedo até quase as cinco da tarde, sob o sol escaldante.
Embora eu começasse o dia feliz com minhas brincadeiras, ficava triste todo final de tarde por ver estampado na cara de minha mãe e das outras mulheres o olhar de cansaço e a tristeza pelo dia sofrido que passou, e já pelo dia seguinte. Por isso, para tentar animá-la, dizia sempre que algum dia seria prefeita da cidade, que acabaria com aquelas pedras e colocaria as lavadeiras em outra profissão. Fazia meu discurso para todas elas, e sempre riam da minha ingenuidade: quem ainda tinha o direito de ter esperança?
Era muito pouco o que ganhavam, principalmente por que quase sempre tinham que sustentar uma família grande, inclusive com o próprio marido, o que era o caso de mamãe. O pouco que papai ganhava sendo servente de pedreiro tinha como destino certo a bebida e a aposta. Muitas vezes ele chegava bêbado em casa e a comida não estava pronta. Minha irmã mais velha por muitas vezes nos levava para fora para não ouvirmos as terríveis brigas que meus pais tinham. Certa vez, meu pai chegou ao extremo de apedrejar minha mãe com pedras tão ásperas como aquelas sobre as quais ela havia trabalhado o dia inteiro. “As pedras fazem minha mãe sofrer duas vezes”, pensava eu.
Algum tempo depois – eu já devia ter uns dez anos - comecei também a fazer o mesmo serviço de minha mãe e de minhas irmãs mais velhas. Certa vez, espalhou-se pelas outras lavadeiras uma doença que ninguém sabia qual era. Tinha medo de contraí-la, mas um sentimento muito pior tomou conta de mim quando minha mãe também adoeceu. Devido àquela situação degradante, e com um impulso vindo do desespero, decidi ir à prefeitura em busca de ajuda. Dr. Rocha era o prefeito da cidade, pois o cargo foi “herdado” de sua família de políticos desde a fundação da cidade. Lembrei-me que foi muito gentil quando foi pedir votos na eleição passada. Talvez com igual gentileza ele atendesse o nosso caso. Entrei na prefeitura com certo ar de esperança, pois ainda tinha os mesmos sonhos de criancinha, e pedi com o melhor ar de respeito que podia para ver o senhor prefeito. Quem me atendeu foi um rapaz, que era seu assessor; tratou-me com gentileza, e disse para eu ir à noite às rochas para vermos o problema. Achei muito estranho, mais ainda era alguma esperança. À noite me arrumei e fui ao local combinado, já com a lista mental dos problemas que eu ia contar preparada. O céu estava limpo, e a lua iluminava todos os caminhos. Em cima das rochas, pensando na vida e admirando a paisagem, me assustei quando alguém puxou com muita força o meu braço: era aquele homem. Jogou-me numa das rochas e me violentou. E lá se foi aquele meu espírito de criança inocente... Depois que ele me deixou livre, saí pela noite, vendo através daquela noite iluminada as marcas bem evidentes da violência. Com medo de eventuais retaliações, menti, dizendo que apenas havia caído nas rochas... muito embora soubesse que de algum modo isso lá era verdade...
Assim, sem ninguém que pudesse reivindicar coisa alguma, muitas das mulheres que adoeceram morreram, sendo que poucos dias depois daquela noite a minha mãe veio a ter o mesmo destino. Meu pai sumiu logo após o acontecido, de maneira que nossa família foi obrigada a se separar. Cada um foi para um lugar diferente, e nunca mais vi sequer um deles. Eu fui levada para a casa de minha madrinha na capital. Não havia muita diferença da minha casa, pois ela era tão pobre quanto nós, de maneira que as pedras de minha vida agora eram imateriais. Fiquei por um tempo atordoada com o que havia acontecido em tão pouco tempo na minha vida. Recomecei a estudar e, passando as páginas de um livro, vi a imagem de uma pedra, e conferi o texto de Carlos Drummont de Andrade o qual ela simbolizava:
“No meio do caminho tinha uma pedra,
Tinha uma pedra no meio do caminho...”
Comecei a lembrar daquele lugar que fora palco de tantas situações alegres e desastrosas da minha vida, e veio à mente a lembrança de mamãe, minha pobre mãe... Lembrei do meu antigo sonho, o de ser prefeita daquela cidade, e concluí que se aquelas pedras haviam entrado no meu caminho, eu é que devia destruí-las.
Desde esse dia, tomei gosto pela leitura e comecei a estudar o máximo que podia para alcançar meu objetivo, por menos que meus professores ligassem para o verdadeiro ensino dos alunos. Ainda bem que minha professora de português apostava em mim. Por ser boa aluna e esforçada, ela me emprestou muitos livros para depois discutirmos sobre eles, sendo um deles um livro de José de Alencar chamado Senhora. Com ela, pude entender que Aurélia Camargo tornou-se independente e se conservou forte mesmo com as injustiças dos homens. Confrontando com minha situação, fui vendo que o problema não eram as pedras em si, mas uma questão de desigualdade que havia entre homens e mulheres. “As pedras que maltratam as mulheres são os homens”, conclui eu. Pelo gosto à literatura, decidi fazer a faculdade de Letras e comecei a militar o feminismo através de artigos e textos. Entretanto, não muito diferente do meu ensino básico, os professores não ligavam para as minhas idéias, e pouco se importavam se mulheres sofriam lavando roupa em pedras numa realidade tão diferente da deles. Muito embora tivessem conhecimento, estava lidando com um bando de “cabeças de pedra”.
Apesar de tudo, no entanto, me formei. O que não me saía da cabeça era voltar para a minha terra, para mudar a situação de lá. Ao voltar, para surpresa minha, tudo estava igual: as mesmas casas, os mesmos comportamentos, com as velhas rochas e suas lavadeiras, nas mesmas condições. O pior era que quem ocupava o cargo de prefeito era uma mulher, a esposa do Dr. Rocha. Consegui ganhar um cargo de professora na escola da cidade e, com algum dinheiro, consegui abrir um escritório para ser sede de meu jornal para a cidade; apesar disso, só quem trabalhava era eu. A primeira edição trazia, por questão minha, um retrato minucioso da realidade das lavadeiras nas rochas da cidade, com o sofrimento com que elas conviviam todos os dias.
O artigo, porém, não provocou reação nenhuma. Então, na outra edição, resolvi ser mais ousada: fiz um artigo criticando a prefeita e sua administração, atacando a estirpe que dominava o poder da cidade desde sua fundação. Convoquei as lavadeiras, outras mulheres e a sociedade em geral para juntos “quebrar os Rochas que nos impediam de seguir o rumo do desenvolvimento e de ter uma vida digna”. No dia seguinte à publicação, quando voltava da escola à noitinha, vi uma porção de pessoas, inclusive as lavadeiras, em frente ao escritório do jornal, apedrejando as instalações; por fim, queimaram tudo. Soube que foi a mando dos Rochas que fizeram isso, de maneira que não podia fazer nada. “Meu Deus!” – chorava eu, desconsolada – “Que maldição está por trás de quem quer apenas destruir as pedras!”.
Meu sonho se tornaria muito difícil de realizar, então. Bem, mas quem falou que existia uma maneira mais fácil? “Se eu não pude pegar a abelha com o fel” – cogitava eu – “então devo pegar com o mel.”. Coloquei todos os meus esforços na minha profissão de professora, pois havia descoberto que nem as pedras em si nem somente os homens eram o problema. “Aqui, as pedras estão em tudo!” – dizia – “ e se consegui, mesmo que por um infeliz acidente, tirar muitas das que estavam no meu caminho, posso fazer isso com meus alunos.” Como professora, incentivei a literatura e sua leitura crítica. Com pouco tempo, meus alunos começaram a ver o mundo também de forma crítica, ficando mais independentes. Os resultados foram tão bons que o antigo preconceito dos outros professores foi vencido, o que culminou em eu conseguir o cargo de diretora, onde pude fazer muito mais com outros projetos.
Os anos foram passando, e meus discípulos foram fazendo bem o seu trabalho, lutando contra a antiga mentalidade de seus pais, ainda que de vez em quando fossem “apedrejados”. Vendo essa situação emergente, senti-me tão forte quanto as pedras que marcaram a minha vida, assim que decidi finalmente concorrer nas eleições. Os Rochas riam muito de mim, pensando que eu não tinha a mínima chance. Pensamento infeliz... Com muita luta, consegui acabar com a dinastia dos Rocha e fui eleita com larga vantagem.
Assumi com muita festa da população. Sozinha, no meu gabinete, comecei a lembrar das rochas em que mamãe passava tristemente seus dias. Levei esse tempo todo para descobrir que o grande problema não eram aquelas pedras à beira do riacho, não os homens e poderosos que queriam ser fortes como pedras para dominar os outros, mas as pedras que estão dentro do coração e da cabeça de toda a sociedade. Tornei-me, e tornei a muitos mais, através da verdadeira educação e do verdadeiro uso das letras, uma pessoa forte como uma pedra, forjada com as dificuldades, mas com um coração humano pronto para ver o próximo. Como promete Aquele que nos ensinou o Amor, nem as portas do inferno prevaleceram contra essas pedras.
Trabalho completo? Nem sequer começou... Mas em ver que realizei meu sonho e dei a oportunidade de muitos outros sonharem, poderia hoje morrer feliz.
Outubro de 2009