domingo, 27 de fevereiro de 2011

Das Pedras


Por Jefferson Rocha

O cheiro daquele lugar me fascinava bastante. É claro, pois quando ainda muito criança era meu único lugar de diversão. Desde quando me notei gente, minha mãe levava todos seus seis filhos para as grandes rochas que ficavam a beira de um riacho de águas turvas, onde lavavam roupa. Era o serviço que minha mãe e muitas outras mulheres faziam para arranjar algum dinheiro para o sustento da casa, já que a renda dependia essencialmente delas. Todos os dias, trabalhavam desde manhã bem cedo até quase as cinco da tarde, sob o sol escaldante.
Embora eu começasse o dia feliz com minhas brincadeiras, ficava triste todo final de tarde por ver estampado na cara de minha mãe e das outras mulheres o olhar de cansaço e a tristeza pelo dia sofrido que passou, e já pelo dia seguinte. Por isso, para tentar animá-la, dizia sempre que algum dia seria prefeita da cidade, que acabaria com aquelas pedras e colocaria as lavadeiras em outra profissão. Fazia meu discurso para todas elas, e sempre riam da minha ingenuidade: quem ainda tinha o direito de ter esperança?
Era muito pouco o que ganhavam, principalmente por que quase sempre tinham que sustentar uma família grande, inclusive com o próprio marido, o que era o caso de mamãe. O pouco que papai ganhava sendo servente de pedreiro tinha como destino certo a bebida e a aposta. Muitas vezes ele chegava bêbado em casa e a comida não estava pronta. Minha irmã mais velha por muitas vezes nos levava para fora para não ouvirmos as terríveis brigas que meus pais tinham. Certa vez, meu pai chegou ao extremo de apedrejar minha mãe com pedras tão ásperas como aquelas sobre as quais ela havia trabalhado o dia inteiro. “As pedras fazem minha mãe sofrer duas vezes”, pensava eu.
Algum tempo depois – eu já devia ter uns dez anos - comecei também a fazer o mesmo serviço de minha mãe e de minhas irmãs mais velhas. Certa vez, espalhou-se pelas outras lavadeiras uma doença que ninguém sabia qual era. Tinha medo de contraí-la, mas um sentimento muito pior tomou conta de mim quando minha mãe também adoeceu. Devido àquela situação degradante, e com um impulso vindo do desespero, decidi ir à prefeitura em busca de ajuda. Dr. Rocha era o prefeito da cidade, pois o cargo foi “herdado” de sua família de políticos desde a fundação da cidade. Lembrei-me que foi muito gentil quando foi pedir votos na eleição passada. Talvez com igual gentileza ele atendesse o nosso caso. Entrei na prefeitura com certo ar de esperança, pois ainda tinha os mesmos sonhos de criancinha, e pedi com o melhor ar de respeito que podia para ver o senhor prefeito. Quem me atendeu foi um rapaz, que era seu assessor; tratou-me com gentileza, e disse para eu ir à noite às rochas para vermos o problema. Achei muito estranho, mais ainda era alguma esperança. À noite me arrumei e fui ao local combinado, já com a lista mental dos problemas que eu ia contar preparada. O céu estava limpo, e a lua iluminava todos os caminhos. Em cima das rochas, pensando na vida e admirando a paisagem, me assustei quando alguém puxou com muita força o meu braço: era aquele homem. Jogou-me numa das rochas e me violentou. E lá se foi aquele meu espírito de criança inocente... Depois que ele me deixou livre, saí pela noite, vendo através daquela noite iluminada as marcas bem evidentes da violência. Com medo de eventuais retaliações, menti, dizendo que apenas havia caído nas rochas... muito embora soubesse que de algum modo isso lá era verdade...
Assim, sem ninguém que pudesse reivindicar coisa alguma, muitas das mulheres que adoeceram morreram, sendo que poucos dias depois daquela noite a minha mãe veio a ter o mesmo destino. Meu pai sumiu logo após o acontecido, de maneira que nossa família foi obrigada a se separar. Cada um foi para um lugar diferente, e nunca mais vi sequer um deles. Eu fui levada para a casa de minha madrinha na capital. Não havia muita diferença da minha casa, pois ela era tão pobre quanto nós, de maneira que as pedras de minha vida agora eram imateriais. Fiquei por um tempo atordoada com o que havia acontecido em tão pouco tempo na minha vida. Recomecei a estudar e, passando as páginas de um livro, vi a imagem de uma pedra, e conferi o texto de Carlos Drummont de Andrade o qual ela simbolizava:

“No meio do caminho tinha uma pedra,
Tinha uma pedra no meio do caminho...”

Comecei a lembrar daquele lugar que fora palco de tantas situações alegres e desastrosas da minha vida, e veio à mente a lembrança de mamãe, minha pobre mãe... Lembrei do meu antigo sonho, o de ser prefeita daquela cidade, e concluí que se aquelas pedras haviam entrado no meu caminho, eu é que devia destruí-las.
Desde esse dia, tomei gosto pela leitura e comecei a estudar o máximo que podia para alcançar meu objetivo, por menos que meus professores ligassem para o verdadeiro ensino dos alunos. Ainda bem que minha professora de português apostava em mim. Por ser boa aluna e esforçada, ela me emprestou muitos livros para depois discutirmos sobre eles, sendo um deles um livro de José de Alencar chamado Senhora. Com ela, pude entender que Aurélia Camargo tornou-se independente e se conservou forte mesmo com as injustiças dos homens. Confrontando com minha situação, fui vendo que o problema não eram as pedras em si, mas uma questão de desigualdade que havia entre homens e mulheres. “As pedras que maltratam as mulheres são os homens”, conclui eu. Pelo gosto à literatura, decidi fazer a faculdade de Letras e comecei a militar o feminismo através de artigos e textos. Entretanto, não muito diferente do meu ensino básico, os professores não ligavam para as minhas idéias, e pouco se importavam se mulheres sofriam lavando roupa em pedras numa realidade tão diferente da deles. Muito embora tivessem conhecimento, estava lidando com um bando de “cabeças de pedra”.
Apesar de tudo, no entanto, me formei. O que não me saía da cabeça era voltar para a minha terra, para mudar a situação de lá. Ao voltar, para surpresa minha, tudo estava igual: as mesmas casas, os mesmos comportamentos, com as velhas rochas e suas lavadeiras, nas mesmas condições. O pior era que quem ocupava o cargo de prefeito era uma mulher, a esposa do Dr. Rocha. Consegui ganhar um cargo de professora na escola da cidade e, com algum dinheiro, consegui abrir um escritório para ser sede de meu jornal para a cidade; apesar disso, só quem trabalhava era eu. A primeira edição trazia, por questão minha, um retrato minucioso da realidade das lavadeiras nas rochas da cidade, com o sofrimento com que elas conviviam todos os dias.
  O artigo, porém, não provocou reação nenhuma. Então, na outra edição, resolvi ser mais ousada: fiz um artigo criticando a prefeita e sua administração, atacando a estirpe que dominava o poder da cidade desde sua fundação. Convoquei as lavadeiras, outras mulheres e a sociedade em geral para juntos “quebrar os Rochas que nos impediam de seguir o rumo do desenvolvimento e de ter uma vida digna”. No dia seguinte à publicação, quando voltava da escola à noitinha, vi uma porção de pessoas, inclusive as lavadeiras, em frente ao escritório do jornal, apedrejando as instalações; por fim, queimaram tudo. Soube que foi a mando dos Rochas que fizeram isso, de maneira que não podia fazer nada. “Meu Deus!” – chorava eu, desconsolada – “Que maldição está por trás de quem quer apenas destruir as pedras!”.
Meu sonho se tornaria muito difícil de realizar, então. Bem, mas quem falou que existia uma maneira mais fácil? “Se eu não pude pegar a abelha com o fel” – cogitava eu – “então devo pegar com o mel.”. Coloquei todos os meus esforços na minha profissão de professora, pois havia descoberto que nem as pedras em si nem somente os homens eram o problema. “Aqui, as pedras estão em tudo!” – dizia – “ e se consegui, mesmo que por um infeliz acidente, tirar muitas das que estavam no meu caminho, posso fazer isso com meus alunos.” Como professora, incentivei a literatura e sua leitura crítica. Com pouco tempo, meus alunos começaram a ver o mundo também de forma crítica, ficando mais independentes. Os resultados foram tão bons que o antigo preconceito dos outros professores foi vencido, o que culminou em eu conseguir o cargo de diretora, onde pude fazer muito mais com outros projetos.
Os anos foram passando, e meus discípulos foram fazendo bem o seu trabalho, lutando contra a antiga mentalidade de seus pais, ainda que de vez em quando fossem “apedrejados”. Vendo essa situação emergente, senti-me tão forte quanto as pedras que marcaram a minha vida, assim que decidi finalmente concorrer nas eleições. Os Rochas riam muito de mim, pensando que eu não tinha a mínima chance. Pensamento infeliz... Com muita luta, consegui acabar com a dinastia dos Rocha e fui eleita com larga vantagem.
Assumi com muita festa da população. Sozinha, no meu gabinete, comecei a lembrar das rochas em que mamãe passava tristemente seus dias. Levei esse tempo todo para descobrir que o grande problema não eram aquelas pedras à beira do riacho, não os homens e poderosos que queriam ser fortes como pedras para dominar os outros, mas as pedras que estão dentro do coração e da cabeça de toda a sociedade. Tornei-me, e tornei a muitos mais, através da verdadeira educação e do verdadeiro uso das letras, uma pessoa forte como uma pedra, forjada com as dificuldades, mas com um coração humano pronto para ver o próximo. Como promete Aquele que nos ensinou o Amor, nem as portas do inferno prevaleceram contra essas pedras.
Trabalho completo? Nem sequer começou... Mas em ver que realizei meu sonho e dei a oportunidade de muitos outros sonharem, poderia hoje morrer feliz.

Outubro de 2009

sábado, 19 de fevereiro de 2011

A Capa de Bartimeu


A CAPA DE BARTIMEU
Jefferson Rocha

 
E lá vinha ele para a beira do caminho. Já era conhecido de todos os que passavam indo e vindo frequentemente de suas viagens, nos dias permitidos, pelas portas de Jericó. De tanto tempo que estava lá, nenhum outro ousava tomar aquele lugar do cego Bartimeu. Bartimeu... Simplesmente filho (bar) de Timeu. Vinha ele para mais um dia, aproveitar o caminho de saída da cidade para conseguir algo para sobreviver, utilizando-se de sua única qualidade: ser cego.
-Pelo menos esse infeliz é cego!- dizia sua amável mulher.
Bartimeu era assim: alguns tinham pena, outros o difamavam. “Coitadinho...” – diziam uns – “a vida dele não é fácil... Alguém devia arranjar para ele uma operação pelo SUS... Mas sempre foi cego... Não dá pra ser nada depois!”. Outros, ah... “Olha, bem que mamãe dizia... Essa raça do Timeu não vale nada! Bando de infelizes! E a velha mãe dele: faladora da vida alheia! A justiça tarda mais não falha! Por isso que o filho nasceu cego! Deu sorte de não ter sido aleijado... Não sei como aqueles impuros nunca tiveram todos lepra!”
Embora soubesse que não sabia fazer nada além daquilo, mesmo sendo pedir esmolas seu único ganha-pão, ele não apreciava sua cegueira. Queria ver as paisagens dos campos, a sua cidade, a rua onde morava, os seus amigos, o quanto o João da mercearia roubava dele no pão... Mas o sonho dele era ver a glória do Templo de Jerusalém; sua situação sequer o possibilitou de ir a Jerusalém, quando era costume ir.
Os seus amigos e parentes então observaram de forma mais atenta sua situação, e notaram que ele não poderia mais estar na situação em que se encontrava. Batalharam, batalharam, e, finalmente, conseguiram para ele... uma capa. Sim! Uma capa! Uma capa é um artigo de alta importância para um cego que pedia esmolas. Mas não era uma capa qualquer... Era uma capa de pano de primeira, bem resistente: made in China.  Pelo toque, ele sabia que era coisa da boa! E lá ia ele todos os dias com a sua fiel escudeira.
Certo dia, havia um alvoroço de pessoas se reunindo perto do portão da cidade. O cego descobriu que era um tal de Jesus de Nazaré, um galileu, que tinha a fama de curar todas as enfermidades. “O quê? Outro bispo da Universal? Ah, vá!”. “Não, seu Bartimeu...” – explicavam – “o homem é profeta, mesmo. Os fariseus morrem de raiva dele. Olha, não é querendo colocar lenha na fogueira... Mas o povo anda dizendo que ele é o Prometido de Deus. Ele vai reinar sobre Israel e nos livrar desse julgo. Tomara que diminua os impostos, por que até no Brasil não tem mais CPMF!”
Nossa! O futuro rei, Filho de Davi estava lá! Ele precisava de um autógrafo! Já imaginou o quanto valeria essa capa depois de ele ser proclamado rei? Uma fortuna! Se bem que ele queria mesmo era um autógrafo do Roberto Carlos, mas desse aí servia...Saiu do ponto, levando sua capa, rumo ao local da concentração, mais para o meio da cidade. Não foi difícil para ele, cego acostumado com os caminhos da cidade, acompanhar o povo junto à grande aglomeração que havia entorno do Mestre. Tentou várias vezes chegar perto, mas sempre era empurrado. Outros poderiam ter aberto o caminho, sabendo que ele era cego, mas já sabiam quem ele era, pelas más línguas. “Certamente é cego porque é pecador! E pecado grave... O Mestre não vai perder tempo com ele.” Por mais que se esforçasse, sequer chegava perto. Na esperança de conseguir um autógrafo na sua capa, tentou mesmo ir no outro dia, mas a aglomeração era ainda maior. Por mais que ele tivesse começado a gritar, não era percebido pelo Senhor.
- Cala a boca, idiota! Estamos querendo ouvir o Mestre!
E se calava. Se bem, pensando, não era muita coisa, mesmo... Não valia a pena... Ninguém sabia se ele ia ser rei mesmo... “Eu podia ter recolhido umas esmolinhas lá no meu esquema... Vou é pra lá logo...”
Enquanto tentava sair daquela turba, esbarrou em várias pessoas. Alguns maldosamente até o empurraram. Um pouco mais distante, atordoado, pensando no tempo que havia perdido com essa sua peregrinação, esbarrou numa mulher; só que, diferentemente dos outros, ela o ajudou a levantar; pela capa, conhecia que este era cego. “Nossa”, disse ela, “sua capa está tão cheia de poeira! Não quer que eu tire um pouco dela?” Depois que terem achado assento, começaram a conversar. Ela dizia que seguia Jesus fazia algum tempo, desde que Ele a livrou de ser apedrejada em Jerusalém pelos fanáticos judeus de lá. Se bem que ela havia pecado muito. Sabia que eles a queriam destruir, mas – notara ela agora-, já houvera se destruído havia tempo, mas não havia ninguém em que confiar o seu sofrimento, não havia saída; tudo era escuridão. Até que houve certo dia, em que ela decidiu que sua vida devia mudar, e tentou fazer isso por si só; infelizmente, não conseguira; e justamente nesse dia, flagraram-na em pecado. Deixaram o homem lá (viam-no com inocente), e a levaram até um homem que se dizia Filho de Deus, para o testar.  Quando a jogaram, estava tão atordoada que nem ouviu o que falaram, nem o que o tal homem havia escrito na areia. Mas um por um foi saindo, até que ficou ela de frente para o Mestre. Foi a primeira vez que ela ousava levantar a cabeça depois que foi jogada ali. “Seu Bartimeu”, disse, “parecia que aqueles olhos já me conheciam fazia tempo. Parece que penetravam no mais fundo da minha alma, e, com a ternura daquele olhar, aquele Mestre dando perdão de seus pecados, entrou a paz dentro do meu coração.” Desde então seguia-o.
Aquele testemunho o encheu de esperança. “Ele já curou várias pessoas que creram nele. Quem sabe Ele não o cura?”, disse a mulher, entregando-o a capa um pouco mais livre da poeira. Despediram-se.
A esperança de Bartimeu cresceu, mas não queria voltar a aquela multidão de novo. “Se eu voltar lá, vou sair além de cego, aleijado, depois que for pisoteado.” Planejou então voltar ao seu ponto, e no outro dia cedinho ir procurar o Mestre.
Bartimeu não chegou mais lá reclamando, gritando por esmolas. Ele se refugiou do Sol e do vento forte com sua capa, e começou a pensar na sua vida, nos seus sofrimento. “Meu Deus... Sou cego de nascença... O que eu fizeram para eu nascer cego? Se bem que pelos erros que fiz, mesmo cego, eu mereço estar nessa situação. Pra aquela mulher, até os inimigos a ajudaram a levá-la ao Filho de Davi... E eu não tenho ninguém.”
No meio de seus pensamentos, eis que começa a surgir um barulho de uma multidão passando pelos portões da cidade; até mesmo uns gritos. “Quem morreu pra ter esse tanto de gente nesse enterro?”, perguntou Bartimeu a algumas pessoas que já o circundavam. “Não, não é morte não... Quem vai passando ali é um doido que diz que é o Prometido... Como se de Nazaré viesse algo que preste... É um tal de Jesus.”, responderam.
O quê? Já ia embora! Se bem que agora ia ser até melhor. Ia ficar lá com sua capa, ia dizer todos os seus problemas, até chorar se fosse necessário... Quem sabe ele não arranja alguma coisa. Curar da vista já era demais... Quem sabe não arranjava pra ele uma capa mais resistente que estivesse na moda, uma dupla de cães-guias ou até mesmo uma bengala eletrônica!
Ele ia chamar, e Jesus viria até ele. “Jesus, filho de Davi! Tem piedade de mim!”, gritava. Mas foi passando o tempo, e nada de ninguém vir a perto dele, levar o Mestre. Ele estava indo embora... Quem sabe quando é que Ele voltaria? E começou a gritar mais forte: “Jesus, filho de David, tem piedade de Mim.”
Todas as pessoas que estavam na multidão ouviram o cego, mas Jesus estava bem distraído conversando com umas pessoas do lugar se a colheita de frutas passada havia sido boa. Os discípulos, já sabendo de sua má fama, vendo que o Mestre não ligava para o cego, mandaram que ele se calasse. “Se o Mestre não atende esse aí, é porque deve ser coisa muito grave, ou é um vagabundo mesmo.”
Apesar da vontade de desistir, o cego sabia que essa seria a única oportunidade de mudar a sua vida. Ele não apenas gritou mais ainda, gritou com toda a vontade de seu coração. Essa era a hora que tanto esperou em sua vida.
Jesus suavemente então parou, e pediu para que trouxessem o cego. Uma voz feminina foi informar o cego: “Tem bom ânimo! Levanta-te, que Ele te chama!”; era aquela mulher que a pouco encontrara. Na certeza de que a sua vida seria mudada para sempre, ele largou a sua preciosa capa, e foi ter com Jesus. “Coitado!” – diziam alguns fariseus que acompanhavam a turba sarcasticamente – “Esse galileu é um bruto! Por que ele não foi até o coitado do cego? Só podia ser de Nazaré, mesmo...”
E chegou Bartimeu até Jesus. O cego, depois de quase correr na medida do possível entre a multidão, ofegando, foi assaltado com a pergunta: “O que queres que eu te faça?” Não pode evitar o pensamento: “Além de surdo, é louco!”. Mas bem sabia na quantidade de coisas que queria pedir ao Mestre, na quantidade de desejos que tinha, mas era de uma coisa só que ele precisava. Na certeza de sua fé, respondeu o que aos outros parecia lógico: “Senhor, que eu veja!”
“Tua fé te salvou” foi a resposta que deu fim ao sofrimento daquele cego que pendurava durante toda a sua vida.  Não só recebeu a visão, como foi salvo: salvo de sua capa. O seu sonho se realizou de ter a vista dos olhos sido dada. Agora, sabia que a vista do coração precisava se desenvolver. “E seguiu a Jesus pelo caminho.”

13, 14 e 19 de fevereiro de 2011.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

O Latim da Poesia

Por Jefferson Rocha

Era o tipo exato de professor que eu detestava. Atormentava-nos sempre a respeito de notas e bons resultados nos estudos, mas fazia muito pouco para que pudéssemos alcançá-los. Obrigava-nos, em português (sua matéria), a ler livros inteiros em poucos dias. “Devem-se libertar de sua ignorância o mais rápido possível”, dizia ele. Nós, que estávamos no ginásio, pensávamos que ele só queria incentivar a leitura para que um dia pudéssemos admirar seus poemas que ninguém entendia. Ainda por cima era poeta. Até os outros professores faziam comentários maldosos sempre indiretos a respeito do modo de seu idoso colega. O que me impressionava, porém, era um ato que ele fazia sempre: quando repetidamente nos saíamos mal em uma prova, ele deixava sempre um recado junto à nota: MEMENTO MORI / CARPE DIEM.
Ninguém nunca entendeu. Mas ele era tão maluco, que quando chegava à sala de aula e via-nos brincando, sempre nos dava um papel com seu Memento mori.
- O que significa isso, professor? – sempre perguntávamos.
-Carpe diem, ora! – era sempre a mesma resposta.
Costumávamos fazer graça da excentricidade do velho. “Está caduco!”, concluía todos. Contudo, não imaginava que a coisa era um pouco séria.
Num sábado, quando voltava da casa de um amigo, vi uma briga na frente de um bar. Para minha surpresa, lá estava meu professor apanhando, completamente bêbado. Soube que ele já havia chegado bêbado, e depois de algum tempo, chorando, passou distribuindo nas mesas a mesma recomendação misteriosa que nos distribuía na escola. “E daí?”-perguntavam os agressivos. “Carpe diem, seu burro!”, foi a resposta desesperada, vista como uma dupla ofensa pelos outros. “Esse velho é louco!”- pensava eu. Mas percebi que havia alguma coisa atrás daquelas palavras, e decidi descobrir o que era.
Depois de várias buscas em livros, descobri que a chave do mistério em latim. Era o cumprimento dos monges trapistas. Um dizia “Memento moris”, que quer dizer “Lembra-te, vais morrer”. O que o outro queria dizer com carpe diem, então? “Deus me livre”? Não! Queria dizer “Aproveita, [pois], o dia de hoje”.
Nossa! Há tanto tempo que aquele velho nos dizia isso e eu não entendia! Isso me ajudaria muito vida afora, pois constatei que estava perdendo muito tempo com coisas inúteis. Era hora de crescer! Esperei até a segunda para contar ao meu professor que já havia entendido, mas foi tarde demais: o espancamento do outro dia fora demaais para ele. Meu professor morreu sozinho.
No ano seguinte, quando entrei no Ensino Médio, comecei a pôr em prática aquilo que de forma tão esquisita me fora passado. Minha vida, apesar dos momentos fracos inevitáveis, foi tornando-se melhor. O professor que substituiu o falecido era jovem e muito competente, de maneira que pude encontrar nele uma base para crescer em conhecimento. Era nosso amigo, e discutia literatura conosco de forma carismática, ao invés de mandar ler livros inteiros em poucos dias para no fim termos pouco proveito.
Um dia, quando estávamos estudando uma parte em que se encaixava o termo carpe diem, ele falou que isso lembrara muito o professor falecido, que também fora seu ex-professor, visto que a mensagem deste havia modificado muito sua vida.
Quando a aula acabou, fui falar com o professor. Eu disse que havia também descoberto o significado das frases, e que isso havia feito igualmente uma grande mudança em minha vida.
-Mas professor – perguntei – por que ele dava essas frases em latim para nós e para os bêbados, se ele sabia que não entenderíamos?
- E é justamente por não entender – respondeu – que eles vão morrer sem aproveitar o dia. O artista muitas vezes é um profeta, e por mais que suas “profecias” sejam jogadas, só quem é capaz de entendê-las é que pode mudar sua vida. Daí o desespero de artistas, dos santos e dos que entre uma coisa e outra se tornam professores.


Outubro de 2009

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Sementes no Chão

Olá, gente. Passo agora a narrar a redação com a qual fui agraciado com um prêmio no plano nacional a nível de Ensino Médio no 4º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero, promovido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e pelo CNPq. Realmente foi um momento inesquecível na minha vida pessoal e acadêmica. Eu desejo sempre que todo o trabalho que eu faça desse por diante sejam em prol de ser um cidadão ativo em nossa sociedade, que necessita de pessoas que sejam verdadeiros pontos de luz. Que meu coração inunde no desejo com o qual eu tive ao fazer esse texto: de ajudar para um mundo melhor, mesmo que seja num pequeno plano, mas que seja algo eficaz.

SEMENTES NO CHÃO
Jefferson Rocha

Pela Associação Educacional Professora Noronha, com a correção do professor David ben Schwantes.


Meu nome é Maria dos Anjos. Sou uma ex-professora e diretora aposentada. Eu completei ontem oitenta e nove anos (não tenho vergonha de mostrar minha idade... pelo contrário, tenho orgulho!...). É uma tarde de sábado chuvosa. Estava ainda pouco sentada na poltrona da biblioteca da minha casa, vendo a chuva cair, lembrando de toda a minha vida e de minhas experiências como professora. Decidi escrevê-las, para que não caiam no olvido como muitas das experiências humanas que mereciam ser contadas, mas nunca o foram, tirando assim a oportunidade de mudança que a história de muitos poderia ter tido.
Quando me percebi gente, vivia num subúrbio da cidade de São Paulo, porém minha mãe dizia que ela tinha nascido em Minas Gerais. Eu era a mais velha de quatro irmãs e três irmãos, vivendo quase que exclusivamente da renda da minha mãe que era lavandeira, já que todas as noites meu pai gastava no boteco quase tudo que ganhava como servente de pedreiro.  Com renda apertada, chegava dias em que comíamos apenas sardinha e ovo... (um verdadeiro luxo se comparado com aquilo que a vizinhança comia).
Nunca me esqueci das inúmeras vezes que tive que esconder meus irmãos das terríveis brigas que meus pais tinham. Chorava, implorava para que parassem, mais quase sempre minha mãe saía muito machucada, ficando até mesmo alguns dias sem trabalhar. Mas o que mais me indignava era o que mamãe dizia depois, quando falava sobre a briga: “Porcaria! Se tivesse a oportunidade de escolher, eu queria ter nascido homem!...”
Apesar dos comentários das vizinhas, consegui ir para a escola. Elas diziam coisas como: “Ela já está bem grande! Se estudar, vai virar uma ‘folgada’! Podia ajudar a coitada da mãe!”. Consegui me alfabetizar e cursei todo o ensino regular, mesmo que de forma precária, devido às nossas condições.
Muitos anos depois, nossa situação não melhorou nem sequer um pouco. Minha professora de português, por eu ser uma boa aluna e muito esforçada, emprestou-me um livro de José de Alencar, Senhora. Foi o melhor livro que tinha lido até então, e aquele que mais revolucionou minha vida. Consegui ver em Aurélia Camargo uma mulher que sabia viver de forma independente, e que havia formado um caráter forte depois de tudo que sofrera com as injustiças dos homens. Ela fazia um contraste muito grande com as mulheres da minha vizinhança, incluindo minha mãe, que agüentavam toda sorte de sofrimentos passivamente, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Comecei então a estabelecer um propósito: tornar-me-ia professora e tentaria mudar esse pensamento retrógrado, como acidentalmente mudaram o meu.
Algum tempo depois, minha mãe morreu de pneumonia, e meu pai fugiu dois dias após o acontecido. Apesar de ser a mais velha dos filhos, fui a única que sobrou em casa.
Uma de minhas irmãs, a mais bonita e totalmente analfabeta, foi “descoberta” e virou  modelo, não sabíamos de quê exatamente (posteriormente, nós descobrimos que ela fazia fotos nua e semi-nua para calendários); a segunda vivia na calçada com as vizinhas, conversando sobre os rapazes que passavam na rua. Depois, fugiu com o “seu verdadeiro amor”, segundo ela; a terceira, mesmo estudando como eu, costumava ouvir os comentários maldosos das vizinhas. Acabou engravidando de um rapaz a quem namorava. Teve que abandonar os estudos para se casar e cuidar de seus filhos e do marido (Posteriormente, eu soube que vivia a mesma vida que a mamãe...). Quanto aos rapazes, bem esses só Deus sabe onde estão...
Dessa forma, fiquei morando sozinha. Por desleixo, nunca até a época havia namorado. Então na vizinhança começaram a me chamar de “moça velha”. Fiquei com tanta raiva daquela gente, que resolvi me mudar. Mudei-me para um outro lugar não muito melhor que o outro, todavia era mais perto de uma universidade, e comecei a fazer o magistério. Estudava e me esforçava tanto para ser professora... e tudo isso para cumprir o meu ideal: tentar, com as armas que tinha nas mãos, mudar a situação de injustiça que as mulheres passavam e fazer com que elas tomassem consciência da força que têm, para não se tornarem iguais a minhas vizinhas ou mesmo a minha pobre mãe...
Formei-me. Acho que fui a única da minha família (talvez até dos nossos conhecidos...) que tinha um diploma. Já com algum dinheiro de trabalhos em algumas escolas, e principalmente com mais experiência, mudei-me para o Rio de Janeiro. Mesmo com tantas vagas em outros lugares disponíveis, acabei recebendo uma vaga para ensinar numa escola de uma favela. “Ah não!” – pensava eu – “um lugar igual ao que vivia... pelo amor de Deus!” Mas mesmo assim, tendo eu uma missão como a que tinha, resolvi aceitar. Realmente, notei sem muito esforço que o lugar era igualzinho ao qual eu vivia antes em São Paulo, incluindo a situação de injustiça vivida pela mulher na sociedade. “Acho que a situação seria igual se viajasse para qualquer outra cidade do Brasil”, pensava eu.
Foi uma tristeza o início. Sabe o que é ter que dar aula a crianças que mal tinha tomado o café da manhã? E algumas, que não vinham a escola só porque não tinham um par de chinelos para calçar? Porém, o pior era ver que havia muitas meninas no lado de fora e poucas no lado de dentro. Será que todo o resto delas não tem capacidade de aprender e a desenvolver sua mente? “Tinham que ajudar os pais”, era a desculpa da maioria dos pais que ia visitar. Mas como eu ia argumentar com essas pessoas? Como eu ia dizer que estudo é crescimento, se a chance de ganhar dinheiro para não passar fome estava muito mais ao seu alcance? Meu trabalho era muito difícil. E quem falou que seria fácil?
Pensando no grande número de semi-analfabetismo entre as mulheres da região, resolvi fazer um trabalho voluntário para verdadeiramente alfabetizá-las (escolhi as mulheres porque a maioria entrava com a maior parte da renda em suas casas, de maneira que seriam as que mais necessitariam disso.) Comecei com algumas vizinhas. Ouvindo da própria boca delas (algumas vezes das outras), vi problemas tão diferentes, e ao mesmo tempo tão iguais...
Mas, com a vontade e o esforço que tinham, sabendo organizar o tempo cuidando dos filhos e da casa, ou do seu horário de trabalho, ou até mesmo aproveitando o horário em que o marido estaria fora, elas aprenderam não só a ler palavras, mas o mundo que estava em sua volta, e a viajar pela Literatura.
Acompanhei uma mulher negra, completamente analfabeta e desempregada. Ela apanhava muito do marido, pois este chegava bêbado e até algumas vezes drogado. Porém, aproveitando o tempo que tinha, voltou a ter ânimo de estudar e completou seus estudos. Nas primeira vezes que saía de casa à escola, deixava um bilhete para o marido: “Faça você mesmo o almoço, fui ‘para’ a escola!” Quase chorei de emoção quando ouvi essa história. Mais tarde, acabou se divorciando dele e se preparou para um concurso. Passou e acabou se tornado uma secretária numa importante multinacional.
Vi uma quase-prostituta (digo isso porque já acompanhava meninas mais velhas do que ela para esses atos. Mas costumo sempre colocar esperança nos mais jovens, sendo que ela tinha apenas doze anos.) que trabalhava pela manhã para complementar a renda da família, que no começo não via a utilidade de se saber ler, viajar através da Literatura, deixando transformar sua mente de tal maneira que, apesar de todas as dificuldades, formou-se em psicologia, e hoje ajuda a muitas outras pessoas a mudarem de vida.
Eu vi também uma lavadeira que tinha que sustentar seis filhos com apenas o seu trabalho tomar todas as suas poucas horas vagas para se alfabetizar. Consegui criar os seus filhos melhor, administrando o seu tempo, e hoje eles sabem fazer as escolhas certas, estando muito bem de vida. Também aprendeu a votar certo. Lembro-me de vê-la, quando ainda analfabeta,  pulando quando seu tradicional candidato ganhava. Na outra eleição, ela torcia para aquele perder e seu novo candidato (ou melhor, candidata) ganhar, pois tinhas as melhores propostas.
Também acompanhei o caso de uma ex-dona de boteco, que trazia menores para se prostituir. O seu boteco estava falindo, pois não sabia organizá-lo e acumulava muitas dívidas. Ela moralizou a sua mente, conseguiu aprender a organizar seu dinheiro melhor e passou a defender o direito das mulheres no bairro, assim como eu. Ela conseguiu montar o maior mercado da região e, utilizando de sua influência, ajudou a criar um instituto para cuidar dessas meninas que teriam como destino a prostituição.
Enfim, há tantos outros casos, uns mais emocionantes que os outros... Todas elas mulheres, que tinham no espírito a força de lutar não só contra um inimigo delas, a própria sociedade, mas o inimigo de todos, o mal uso da educação na sociedade. Consegui criar aurélias-camargo-de-um-salário-mínimo. Fico feliz em saber que a cada dia as mulheres vêm ganhando seu lugar, mas sobretudo como sendo a melhor alternativa. Fico feliz também em ver que muitas que eu ajudei tornaram-se árvores, que já geraram frutos e vão, com certeza, espalhar suas sementes. Há ainda nesta sociedade moderna, mais com o pensamento arcaico, muitas diferenças entre as mulheres e os homens, que vão além do natural. Mas tenho certeza que a verdadeira educação, coisa que vai muito além de conteúdos e provas, é algo que faz abrir a mente das pessoas, sejam homens ou mulheres, para os erros que nossa sociedade, que por negligência de todos, têm, e dá condições para tentarem consertá-la. Além dos vários outros problemas, a desigualdade entre os gêneros será também consertada, principalmente se somado à força que a mulher tem.
Era o que eu tinha a deixar. Já está começando a anoitecer e a chuva ainda cai lá fora. Só espero que as sementes que plantei com tanto esforço floresçam. Mas só em saber que cumpri meu ideal no meu mundo, poderei morrer feliz.

Dom Pedro, outubro de 2008.